quarta-feira, 24 de maio de 2023

Trechos do Manifesto do Teatro Essencial

 "Irati. Ir a ti. Pequena cidade do sul do Brasil onde nasci. Parece uma bacia, se diz. Parece sim, com aquelas montanhas ao redor do vale onde estão as casas. Da minha, eu via os campos de trigo lá longe e pensava: deve haver algo a mais, além daqui.


Senti o mesmo com o melhor teatro que encontrei. Pensava: deve haver mais, além. E tem. O a mais é o que está sempre vindo. Dentro desta disposição dialética me sinto livre.

O que me encanta no teatro é esta possibilidade de escolher. Assim, escolho para mim o Teatro Essencial. E o estabeleço como meu. Aquele teatro que tenha o mínimo possível de efeitos, o mínimo. E que contenha a máxima teatralidade em si próprio. Que na figura do humano no palco se realize uma alquimia única: aquela em que a realidade da representação (da reapresentação) é mais vibrante que o próprio tempo cronológico. Que critique esse tempo, que revele esse tempo. Que nesse fim de século o teatro possa reafirmar o sentido essencial como bem mais evidente que matéria descartável. Quero trocar a fantasia da composição teatral pela presença viva do ator. Acredito na relação de nova realidade que se faz na força da presença viva do ator, engajado na história com suas idiossincrasias, sem recursos do fabricado, limpidamente como água na fonte. Os valores do palco muitas vezes estão povoados de valores de bastidor, de camarim. Quero o palco nu. Os figurinos, cenários e discursos radiofônicos muits vezes acoplam parasitárias imagens no ator. Não quero decoração.

Quero no seco. Com raiva decreto o fim do excesso. A pirotecnia mente. Quero sinceridade.

No lixo o broche. No palco o peito.

O ritmo e o espaço em si trazem diagramas teatrais vertentes de riqueza. Cervantes e a palavra, Beethoven e a nota, o teatro e o ator... De Irati a Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, permanece a idéia dos campos de trigo. Em qualquer lugar eu os vejo no horizonte me provocando o pensamento: deve haver mais, além.

Como atriz, diretora, autora, minha preocupação sempre é o poder, as injustiças sociais, os comportamentos padronizados, a estética e a ética rançosa do sistema patriarcal capitalista.

Cada vez mais estou menos interessada nos movimentos microcósmicos da sociedade. Cada vez menos cultivo ídolos. Cada vez menos acredito no best-seller. O senso comum está desmistificado no Brasil que pára para ver novela. Que elege seus mitos com os mesmos parâmetros com que reclama, invariável e passivamente, do governo. Essa sociedade que se protege no útero do padrão. Cada vez mais estou mais anarquista. Cada vez mais rio dos políticos (dos de profissão e dos de atuação). Cada vez mais me salvo pelo caminho pessoal, individual, único. Aos meus ex-alunos sempre digo, se me perguntam o que fazer: inventem, porque os princípios estão rangendo, há algo de podre em todos os lugares. Trabalho pelas gerações que virão, não tenho a menor crença no resultado imediato. Mas sei que o Teatro Essencial altera algumas bases do nosso teatro. Já não fico bêbada com o sucesso. Apenas mais científica sobre as platéias. Nem as conquistas de mídia me seduzem. Não me delicio com o deslumbre. Quero uma organização mais limpa da comunicação. Que se respire menos barrocamente nesta área.

Odeio a maior parte das regras de nossa organização social. Considero antivida, com cheiro de mofo, todos os cânones comportamentais, o gosto da estética burguesa, a despersonalização de colonizado. A morna atitude de nossa nação mediocriza nossa experiência vital. Aí nossa cultura reflete esse cômodo respirar consumista, essa falta de diversidade. Esse pequeno clube de interior, que é nosso ambiente cultural, se ressente. Ser artista aqui exige que se enfrente o solitário desejo pessoal de mudar, de inventar, de renovar. Quanto ao mercado, sobreviver dentro dele já é outra perspectiva. Igual a qualquer outro mercado. Acrescido do abandono do que seja arte numa Republiqueta.

(...)

Não dispenso a chance de manifestar-me na expansão do meu feminino, que é peculiar, que é único. Meu trabalho é o de uma mulher no século XX. Como não ser especial? Não, não dispenso meu trilho do feminino. Temos toda a História sendo escrita. Somos nova, frescas e fortes.

Não esqueço a miséria do Brasil, da miséria latina. A miséria do não-pão, da miséria do egoísmo, a miséria dos ideais, a miséria cultural, a miséria televisiva, a miséria das relações humanas, a miséria da saúde, a miséria dos sonhos, a miséria da loteria, a miséria dos enganos, dos remédios, do desespero, da solidão. A tragédia brasileira. Os cambodjas cotidianos nos hospitais do Brasil. As chernobylls escorrendo das favelas, nos trens da Central. O heroísmo largando a capa e a espada, saltando para a página documentária. Olho no olho da pobreza, cheiro de sujeira e fome, muita fome, em todas as classes do Brasil. De pão com vitamina, do faisão de uma boa música. Fome e ecologia gritam nas escadaria do palácio do Planalto, inutilmente. Gritam na História. Artista tem ouvido de tuberculoso. Político é sadio. As pessoas pensantes, não as que não gostam de pensar, mas as que saboreiam o cérebro e acariciam a alma, estão muito preocupadas. Com o vírus, com o fim. Tudo está muito urgente agora. Os valores se atropelam. Há muitos espetáculos de teatro que olho e penso: mas isso é pré-Aids, agora não é mais assim.

(...)

Minha idade é massa, minha idade é bela. Nela não se é mais predicado nem sujeito. A gente vira verbo de si própria. A gente vira agente.

Que bom que não fiz nenhum festival da canção antes. Estou mais apta hoje, para os inimigos. Me sinto mais categorizada com a raiva sem fim que trago contra a banalização, o superficial. Me sinto geração eleita ser a última de meia-idade deste século redondo, o vinte. Para nós reservou-se o pior. Por isso fomos tão violentamente treinados em nossa juventude precoce. Convivi muito com o suicídio mental para despertar hoje os princípios da sobrevivência com know-how. Escolher e alimentá-los. A ilusão morreu nos primeiros vagidos do sucesso. Depois recolhemos a placenta e a comemos como vaca. Amamentou-se o feto. Deu no que deu: maturidade. Aceito o fim do meu século como presente de poderosos: somente kharmas autônomos o enfrentarão com criatividade e vitalidade. A verdade hoje assumiu-se como passaporte para o século XXI. Me lembro de um dia, nos anos 60, em que escrevi: "O astronauta americano hoje pousou na lua. O monopólio estendeu-se pelo universo".

Hoje, duas décadas de guerras, me considero vitoriosa na resistência, com uma família bem especial, um teatro pessoal e absurdamente feliz.

Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, Rio. Feito égua selvagem, me recuso a sair do pasto de Irati. É de lá que vejo os campos de trigo."

Denise Stoklos - Março de 1987

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Solo ou monólogo?

Neste pequeno vídeo aqui, Denise Stoklos esclarece a partir de um pensamento seu qual a distinção entre um trabalho solo e um monólogo, assista:

 https://youtu.be/bs5jq3mFaOc

Quem é Denise Stoklos?

Foto por Kim Leekyung


Atriz, dramaturga e multiartista, Denise Stoklos (1950, Irati, Paraná) é criadora do chamado "Teatro Essencial" e uma das artistas brasileiras que mais levou o teatro brasileiro para fora do país, apresentando-se em 33 países em mais de 7 idiomas. Nas palavras da própria autora, a definição conceitual deste teatro é:

"Um teatro que tem o mínimo possível de gestos, movimentos, palavras, guarda-roupa, cenário, assessórios e efeitos mas que contém o máximo de poder dramático" (STOKLOS, 1993, p.4)

Há mais de cinco décadas praticamente sozinha no palco, Stoklos revela-se única por várias razões, desde sua auto-afirmação enquanto atriz brasileira no exterior até sua força estético-política de uma mulher que optou por inconformismo declarado e consciente e que não se rendeu à teatralidades fáceis. Especializou-se em mímica na década de 70 na Inglaterra e desde então sua pesquisa teatral voltou-se para o estudo detalhado do corpo resultando numa linguagem que sublinha a potência da presença física do ator em cena.

Segundo Stoklos ela sempre quis "trocar a fantasia da composição teatral pela presença viva do ator". Assim pontuou em manifesto publicado em 1987 onde delineia as características da sua proposta artística:

"Quero o palco nu [...] Com raiva conclamo fim de excesso. A pirotecnia mente. Quero sinceridade. No lixo o broche. No palco o peito" (STOKLOS, 1987, p.5) 

Com essa e tantas outras reflexões pungentes, o que Stoklos comprova é que teatro se faz com o que se tem: corpo, voz e intuição. E aproveitando o máximo que isso pode oferecer. Segundo o artigo "O Teatro Essencial sob uma perspectiva minimalista", de Davi Giordano, “o ator se torna encenador de si mesmo e traz para o trabalho a luz da sua auto-direção. Isto permite ao artista-criador possuir de início um controle rígido sobre o que planeja ser criado.” (GIORDANO, 2011, p.2)

segunda-feira, 1 de maio de 2023

APRESENTAÇÃO

Olá, sejam bem-vindxs a este blog aberto para a disciplina TEATRALIDADES BRASILEIRAS 1/2023. Meu nome é Luca Lima, sou ator, performer e escritor. Pretendo fazer publicações ao longo do processo de pesquisa que inicio neste momento acerca do Teatro Essencial da encenadora e atriz brasileira Denise Stoklos. Este será um espaço destinado à documentação e ao levantamento de todo o material que ao final do semestre se tornará um seminário.



Foto de capa: Humberto Araujo/Festival de Curitiba