ENTREVISTA COM DENISE STOKLOS
26/06/2023 (transcrição na íntegra de entrevista concedida por Denise Stoklos por telefone)
Alô
Ei Denise!
Garotinho de ouro, como
está?
Ah que
delícia, tudo bem e você?
Que delícia. Também tudo
bem, tudo ótimo, que bom falar com você!
Ai, bom
demais, eu estou suando frio nas mãos.
Mas você sabe tudo do
Teatro Essencial, o que que eu vou dizer pra você?
Ah, você vai
dizer pra quem não sabe!
Tá bom.
Ai que
nervoso. Que nervoso.
Ah não… fica calmo. Tá
tudo em cima, tudo ótimo.
Você tá bom?
Oi?
Você está bem?
Estou bem,
estou bem, tudo certo.
Ótimo.
Eu até linkei algumas coisas aqui pra gente
conversar. Acho que tem um formato bem livre assim. Eu até intitulei o
trabalho: “Quando o palco fica nu: dissecando o Teatro Essencial de Denise
Stoklos”.
Nossa que lindo, adorei!
Assim que
ficar pronto eu te mando também. Deve ter umas sete páginas, quase um artigo
assim.
Nossa, que maravilha!
Eu trabalhei
em cima da tese do Ipojucan, de um artigo que o Davi Giordano publicou sobre
Teatro Essencial e Minimalismo. Em cima dos livros e manifestos, é claro,
sobretudo sobre eles e suas entrevistas e algumas citações da Cristiane Moura
também, né?
Certo. Perfeito.
Bom, pra
quem não conhece, Denise Stoklos é atriz, diretora, coreógrafa, performer,
multiartista já tendo se apresentado em trinta e três países em mais de sete
idiomas. Ficou muito conhecida por ter
desenvolvido o chamado Teatro Essencial. Queria saber como foi o processo de
desenvolvimento dessa proposta artística e quais foram suas maiores referências
à época pra concepção desse tipo de teatro?
Bom, eu comecei em teatro
escrevendo já uma peça com dezoito anos. E dirigindo essa peça, apesar de eu
ter chamado amigos meus pra trabalharem nela, então não era um solo. Mas eu
trabalhava como atriz também. Desde então, alguns diretores que assistiram à
peça, isso foi ainda no Paraná onde eu morava e estudava nas faculdades de
ciências sociais e de jornalismo. Aí eles me convidaram para peças deles que
eram de repertório nacional, como Arena Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes e
outras de outros autores.
Eu tive a oportunidade de
me especializar muito como atriz nessa época, ao mesmo tempo em que assim que
eu estreei a minha peça escrita eu já comecei a escrever outras em seguida.
Então eu tive por um momento muito contato com a questão da escrita para o
teatro e as adaptações para o palco. E isso me envolveu profundamente, uma vez que eu vinha dessas
formações universitárias onde se debatia demais a questão política. Estávamos
nos anos sessenta e oito, sessenta e nove, setenta. Então o meu o “jornalzinho”
da faculdade era voltado exclusivamente para se debater essas questões e eu
participava, nunca fui líder estudantil, mas participava das passeatas todas.
Esse era o nosso ponto principal, buscar uma justiça social, econômica,
política e com isso a minha primeira peça já foi baseada na Mais valia, do
Marx. Foi uma metáfora das diversas formas de luta para conscientização das
pessoas em relação às injustiças sociais, as opressões, os grupos dominantes e
a partir desse primeiro espetáculo todos eles se tornaram a referência nesse
ponto, nessa questão. Eu não sabia e não saberia como escrever qualquer outra
coisa que não tivesse ligada imediatamente à oportunidade de dar ao público uma
conscientização dessas questões sociológicas. E isso nunca mais me abandonou.
Durante, depois, a minha carreira toda de atriz, que eu saí de Curitiba e fui
trabalhar no Rio de Janeiro com diretores de muita experiência, como Ademar
Guerra, depois em São Paulo com Antunes Filho, com José Antônio Martinez Corrêa
e outros diretores, sempre a minha escolha eram em peças que tivessem essa
conotação. E nunca deixou o meu trabalho de ter uma relação com essa
possibilidade de mexer, transformar um posicionamento da plateia de passivo
para ativo. Que elas percebessem, as pessoas que assistissem esse teatro,
percebessem que poderiam transformar a sua vida para melhor, para mais justa,
para mais ampla, para mais humanidade, para mais amor, para mais liberdade, que
são as palavras que eu uso muito para definir esse tipo de teatro.
Então as minhas
referências na época eram todas as que a contracultura levantou: Grotowski, os
japoneses, Boal, Richard Schechner, nos Estados Unidos. Todos eles que mexessem
profundamente com as estruturas, o Eugênio Barba e Dario Fo, todos que mexessem
com essas estruturas que empedram o andamento do indivíduo.
Então o meu teatro, por
mais que tenha se tornado aos poucos solo performance, isto é, eu mesmo escrevia,
dirigia e atuava, mas tinha a intenção primeira de que o espectador saísse do
teatro quase que sensação plena de que ele era o autor também da sua vida e da
sua experiência grupal.
E
você lançou o manifesto lá por 87?
87. Foi quando eu tive o
meu convite para me apresentar nos Estados Unidos, depois de ter apresentado um
solo escrito por Dario Fo e Franca Rame: “Um orgasmo adulto escapa do
zoológico.” Eu apresentei no Uruguai e aí, em contato com a diretora, do La
mama, que é um teatro de vanguarda nos Estados Unidos, ela me convidou para que
eu me apresentasse lá e que levasse o espetáculo que eu quisesse.
E como eu já estava
estudando há algum tempo esse tema da Mary Stuart, através de uma peça de uma
italiana Dacia Maraini, que tinha escrito uma peça para duas atrizes se
revezando, fazendo a Mary Stuart e sua criada, Elisabeth e sua criada. Eu achei
o jogo dramático muito interessante e a partir dali comecei a ler todas as
referências que tinham sobre o tema, Mary Stuart em teatro, a peça do Schiller
e todas as outras e biografias.
E enfim, fui me integrando
demais a esse tema, ao mesmo tempo em que eu não conseguia fazer a peça da
Maraini exatamente como estava escrita, porque faltavam situações que eu queria
dizer e que não constavam na peça e sobravam outras que interessavam a ela
dizer que a mim não interessavam. Então, quando eu vi eu fui escrevendo uma
nova peça, por mais que eu tenha convidado até a Maraini para vir da Itália
assistir a estreia. E ela foi. Mas quando chegou lá, a peça já estava
completamente refeita, reescrita e ela mesma disse: “Olha, obrigada por você
ter partido do meu tema, mas agora essa peça não tem nem como eu cobrar
direitos autorais. Essa peça é tua e você a registra como sua autoria. São duas
peças diferentes”. E a diretora do La Mamma, a Ellen Stewart, gostou demais da
peça. Houve uma repercussão da imprensa muito grande e lá é um teatro que, por
natureza, as peças ficam somente três semanas em cartaz. O que interessa é
lançar o espetáculo novo, experimental. Se fizer sucesso, ela diz: “vai pra
Broadway se quiser, mas não fica aqui. Aqui é para lançar experiências. É um
local de experiência.”
Então, a partir daí, ela
me convidou para todo ano estrear peças minhas novas lá. E foi o que eu fiz.
Mas durante esse processo da apresentação de Mary Stuart que foi uma coisa,
assim, bastante bombástica porque saiu uma chamada na primeira página do New
York Times para ler a crítica na página de críticas, porque era uma peça
importante, uma dramaturgia interessante, nova, vinda de uma mulher
sul-americana. Então, com isso eu ganhei
essa credibilidade para poder levar todos os anos lá. E como os Estados Unidos,
diferentemente do Brasil e dos países latino-americanos em geral, há uma
memória de atos, de ações. Então, cada vez que eu estreava, antes de estrear já
saía como peça indicada da semana nos jornais importantes, como o “The Village Voice”,
e o próprio New York Times e outros jornais, fora os latinos também, que
cobriam muito isso. Então eu tinha um público muito bom. Apresentei nos teatros
que lá tem um conglomerado. São quatro salas de teatro. Comecei numa sala
pequena e passei a me apresentar depois na sala principal, que era a sala
grande, para eventos completamente internacionais consagrados. Mas passei para
lá. Muitas vezes me apresentei lá, então foi a minha casa lá em Nova York, que
culminou com o convite da New York University para dar aulas sobre o meu Teatro
Essencial no curso de Performance Studies, que é considerado o melhor curso de
performance dos Estados Unidos.
Então, esses convites
internacionais foram surgindo independente das minhas apresentações nos Estados
Unidos porque a partir de festivais que eu mencionei, no Uruguai, onde eu
conhecia Ellen Stewart, outros produtores de outros festivais estavam lá e
também me convidaram para Espanha, para a Alemanha. E em cada lugar que eu ia e
me apresentava, outros produtores de outros festivais convidavam para seus
países. A Escandinávia, apresentei na Suécia, na Dinamarca, voltei várias vezes
pra Alemanha, apresentei depois na Ucrânia, em Moscou também. E Romênia,
Israel... Tudo isso foram de contatos a partir de apresentações em festivais
internacionais.
E
digamos que o Teatro Essencial tenha brotado no La Mama? Assim, a primeira vez
em que você esboçou?
Sim, porque foi lá que a
minha primeira peça escrita, lá com dezoito anos, se tornou uma coisa sólida e
que eu pude identificar como uma teoria a ser proposta chamada Teatro Essencial
e publicada em um manifesto, no livro, que então teve esse nome e levou aí já a
umas palestras que eu tinha dirigido em alguns teatros para onde eu tinha
levado outros espetáculos do meu repertório.
O
manifesto então é quase como uma confirmação do que você já vinha
experimentando no seu corpo?
Exatamente. Ele foi o
reconhecimento. Eu fiz uma tese daquilo que eu estava vivenciando já há algum
tempo e que eu percebi que tinham fatores que se repetiam e que se formavam
como um quadro definitivo de uma linha de trabalho. Isso foi reconhecido depois
por uma importante publicação chamada TDR (Theatre Drama Review). Foi publicado
ali meu manifesto como uma espécie de aval do que se lança como novo. Uma vez
que consta ali no TDR é porque já existe como algo fixo, determinado e uma
proposta estética e política, né?
E
você acha hoje que depois de mais de cinquenta anos de carreira seria uma busca
a cada espetáculo ou um sistema com conceitos prévios e já estabelecidos?
É um sistema com conceitos
prévios e estabelecidos que, se seguidos conforme eles estão determinados,
propostos e registrados, eles proporcionam um espetáculo com essas
características que eu citei há pouco, de mexer com o espectador de forma a
emocioná-lo para que ele cresça, para que ele mesmo desenvolva suas próprias
ambições de um humanismo mais efetivo e qualificado e em ação, em ato. Agora, é
claro que no desenvolvimento da minha carreira eu estou indo para diversos
lugares, eu vou me expandindo. Ultimamente, minha última peça que foi sobre
Clarice Lispector é praticamente uma leitura dramatizada onde eu dou
importância que a palavra tenha o gesto contido nela mesma, porque uma vez eu
cheguei a escrever, assim, como um devaneio de que eu adoraria um dia chegar
num teatro, no centro do palco, não falar nada, não dizer nada, não mexer nada
e ainda ser teatro, só pela energia da presença do ator consolidado com seu
tema. E isso é uma coisa que eu tenho tentado fazer a partir desse espetáculo
“Clarice Lispector”, onde eu leio o papel na mão, mencionando também o fato
dela ser escritora, que o papel era a sua matéria prima, então usando como
elemento cenográfico também e lendo, dando uma noção de que o olhar do ator
lendo a palavra escrita, recém escrita pela autora, dava uma mobilidade, um
movimento, mesmo que o corpo não precisasse mais fazer tanta acrobacia, tanto
desenvolvimento dentro do espaço como eu fiz em outra época, mais jovem.
Acredito que é uma evolução e isto está se tornando uma trilogia. Agora eu
estou trabalhando num segundo espetáculo de uma poeta polonesa que carrega a
mesma característica deste espetáculo da Clarice, só que no da Clarice eu
chamei um diretor e um dramaturgista pra ainda ampliar esse meu campo, trocar
com outros pares com quem eu me identifico, eles vieram trazer suas
contribuições. Mas nesse não, nesse segundo da trilogia, que se chama “Não
sei”, esse trabalho eu estou sozinha, eu mesma me auto dirigindo, mas ainda com
a ideia do papel da poeta na mão e com uma tentativa de tornar movimento
agilidade mesmo sendo aparentemente uma leitura dramatizada, que não é exatamente, há uma diferença, é um teatro essencial.
Então
aquele desejo de pela presença imantada ainda se ter ali em cena uma energia absolutamente teatral
ainda está como perspectiva?
Ainda está como
perspectiva, ainda não atingi, ainda não cheguei lá, ainda preciso dizer as
palavras e ainda preciso tornar o espetáculo cheio de intervenções
coreográficas com músicas, canções onde eu faço algumas enunciações de
coreografia. Elas não chegam a ser as coreografias que eu fazia com as outras
peças que se dirigiam mais à coreografia das palavras e das cenas, essas são
mais coreografias das canções. E nesse espetáculo atual que estou elaborando,
como ele é um espetáculo pós-pandemia e pós-Bolsonaro eu dei ênfase para que
ele fosse da delicadeza, da poesia, que é o que um mundo violentíssimo como o
que estamos passando agora no Brasil, onde a gente vê a violência de todas as
formas possíveis, exacerbadas e em qualquer assunto, sejam assuntos mais
libertários como a discussão de gênero ou discussão de racismo, há uma
predominância de uma violência um pouco perigosa porque nem sempre dirigida ao
ponto primordial onde ela provocou, sobrando violência para todos os lados.
Então nesse “Não sei” eu dei ênfase na poesia pura porque como é poesia eu vou
para a delicadeza desse momento em que se concebe aceitar a poesia como
linguagem completa.
E
qual é o seu trabalho de apropriação da palavra dessa poeta? Como é esse processo
de apropriação da palavra para que seja um testemunho próprio do performer em
cena?
Primeiro já foi na escolha
dos poemas porque ela tem muita coisa escrita, a Wislawa Szymborska. Eu li tudo
e fui selecionando aquilo que eu entendia como tão idêntico ao que eu
compreendia que era quase meu se eu tornar-se possível de levar a minha
embocadura. E isso eu fui fazendo nas minhas seleções desses temas, desses
poemas, de forma que foi se tornando um manifesto, um outro manifesto meu do
momento atual onde digo ao outro, ao meu companheiro que está sentado na
plateia, porque e como a gente pode se salvar na leveza e na força dessa
leveza. Porque ela era extremamente ligada politicamente e os poemas dela são
de uma beleza poética incontestáveis.
Você
compara traduções para se aproximar?
Sim, eu procuro e leio
também em outro idioma, nos idiomas que eu domino, leio o mesmo poema para mim,
para efeito de estudo, para compreender e para inclusive tomar uma pequena ou
uma ou outra liberdade de escolher mudar uma palavra de uma tradução a outra
onde me parece que é mais contundente, mas isso me parece que é um trabalho
muito sutil, onde eu procuro não interferir na obra e estar no palco como se eu
tivesse acabado de escrever aquilo.
Para
mais de cinco décadas praticamente sempre sozinha em cena, qual seria o
diferencial que o solo tem dentro de um vasto panorama pós-dramático que nós
vemos hoje nas artes cênicas no Brasil?
Ah, eu acho da maior
força, eu acho que está cada vez mais forte, cada vez mais importante e necessário.
E posso citar com grande certeza os trabalhos que eu vejo como o teu, como o do
Wallace e de tantos outros que estão trazendo uma importância dentro do
panorama nacional que é transformativo e marcante, além do mais, isto é, tem um
antes e depois deste solo que está sendo feito agora. É necessário esse solo, é
um solo que arrebenta com inúmeros padrões antigos e vem com uma força de
frescor, de um poder transformativo, não o poder opressor, necessaríssimo. Eu
vejo suas coisas e fico fascinada por isso, o quanto ele é autoral. Ele desfaz
tudo o que você por um acaso tenha compreendido através de aulas minhas ou dos
seus estudos. A sua autoria é tão total, é tão “aggiornada”, como diria o
italiano, é tão atualizada que é seu. Não tem um início, não tem um antes, ele
começa em você. Então isso torna de uma novidade, de um frescor, de uma
necessidade orgânica e eu adoro ver isso.
Você
acha que é importante – em termos de linguagem para o teatro essencial –
distinguir ator e performer?
Eu acho que é quase uma
questão semântica porque o ator está mais disponível a
qualquer tipo de interpretação. Pode ser uma interpretação do texto e da defacetação que um diretor possa fazer
desse texto e o performer a gente já qualifica como aquele que ele mesmo faz
isso tudo sozinho. Então semanticamente a gente não
tem melhor solução do que separar essas duas palavras. Mas os dois, claro,
que o ator solo pode ser chamado de ator e de performer da mesma forma, estão
ambas corretíssimas, de todos os pontos de vista. Mas
eu acho que o performer qualifica mais esse caminho todo que ele faz da
descoberta daquilo que lhe serve para dizer, daquilo que ele quer dizer,
daquilo que ele quer ser autor, mesmo que não tenha sido escrito por ele. Como
você faz com o Leminski e com tantos outros, eles se tornam seus, da sua
vivência, diferentemente do próprio Leminski recitando textos dele. Torna-se
uma obra teatral a partir do performer Luca. Então isso eu acho da maior
importância que exista, sobreviva e se afirme cada vez mais.
Você
fala tanto do Leminski que eu tenho vontade de retomar aquele trabalho, que
aquele trabalho é uma delícia.
Você pode, você tem um
repertório, Luca. Tudo o que você já fez faz parte do seu repertório, você pode
voltar a qualquer hora.
Pois
é. Nossa, e você falando eu agradeço imensamente pelo furo de reportagem,
lógico que eu não vou falar pra ninguém, mas eu acho que você ainda não
divulgou seu novo solo
Não, só pra você.
Eu
trabalhei com poemas dela
no semestre passado. Nossa, fiquei assim quando você
falou. Trabalhei com o poema do grão de areia. Acho ela fantástica.
Ela é incrível.
Deixa
eu te perguntar, para o jovem que nunca ouviu falar em Teatro Essencial, muito
menos em teatro de fricção, como você explicaria como se dá isso?
É porque a gente pode
partir da ideia contrária que é aquele teatro feito por uma companhia que
escolhe um texto, daí passa pela visão do diretor que daí vai determinar que o
ator tenha certa interpretação determinada pelo diretor e pelo autor e assim construam
uma ficção, onde o espectador a ele lhe resta ler aquela ficção de uma forma um
tanto quanto “voyeurística”, porque ele não pode fazer nada com aquilo a não
ser decifrar o que o autor, o ator e o diretor estão querendo dizer. Na fricção, o espectador é conclamado a ele estar
interpretando esse performer que trouxe a ele a sua própria visão, isto é, ele
já está condensando toda uma visão única e dirigida especialmente de um a um,
na plateia. Porque cada um terá uma visão de uma determinada camada de leitura.
Aquele que tem capacidade de interpretar mais o que está sendo dito por uma
questão cultural ou de informação, ele vai mais a fundo naquilo que o performer
está comprometido. Aquele que tem uma informação mais rasa, ele terá outra
leitura, mas todas elas serão sempre libertadoras, mas
nunca passivas, nunca “voyeurísticas”, sempre altamente colado à emoção do
performer. Então ele se transforma junto com a emoção do performer, essa é a
fricção.
E
você acha que para uma pessoa que não te conhece, não conhece o Teatro
Essencial, teria uma porta de entrada, assim, uma peça que você escolheria para
dizer que é quase um cartão de visitas do tipo de proposta?
Não, eu acho que todas que
passaram no meu repertório, igual às suas que você está formando, são momentos
onde eu estive completamente identificada. Seja lá em “Mary Stuart”,
“Des-medeia”, “Desobediência Civil”, “Fax pra Colombo” ...
Você
considera que você tenha aposentado, por exemplo, “Mary Stuart”? Completou um
tema, um ciclo?
Não, não. Eu não experimentei
ainda se fisicamente eu tenho… agora com 72 anos… se eu tenho condições de
fazer aquelas coreografias todas que envolvem...
Eu
ia perguntar como você sente no corpo assim...
Não sei, porque eu não
experimentei. É uma questão ainda a ser... está um pouquinho mais a frente
isso.
Você se lembra quando foi a última vez que você
fez ela (Mary Stuart)?
Mary Stuart não, mas eu
fiz “Vozes Dissonantes” há três anos no teatro municipal e tocou muita gente.
Eu até achei que eu estava um pouco fora do peso, excessivo, e achei que eu não
ia nem saber fazer e no fim saiu tudo conforme ela foi escrita e coreografada e
não houve diferença nenhuma. Esse momento do sobrepeso passou completamente,
então não sei nem... eu não experimentei ainda, mas está nos meus programas,
depois de fazer essa trilogia dessas, digamos, leituras dramatizadas.
A
trilogia se completaria com um terceiro além do “Abjeto-sujeito”?
Com um terceiro, isso...
além do “Não sei” e aí vem uma outra na mesma estrutura dramatúrgica, onde eu
tento fazer o menos possível de movimentações, de alcances de corpo no espaço,
mas trazer através da palavra a força interpretativa corporal na própria
palavra. Pelo ritmo, pelo tempo, pela entonação e pela respiração.
E
é uma trilogia por você estar mais porosa a materiais dramatúrgicos de outros
autores?
Mas eu sempre estive...
Ou
por uma pesquisa?
Por uma pesquisa.
Corporal,
talvez?
Sim, porque foi me
levando. A minha idade foi me levando a isso e eu fui querendo ver como é que
era. Fui querendo descobrir como é que era fazer uma coisa com menos
desenvoltura corporal dentro do espaço. Como é que ficaria? Como é que poderia
virar teatro? Dentro daquela ideia magnética de ficar não fazendo nada e ainda
ser altamente teatral. Ficar ainda no meio desse caminho, ainda não cheguei lá,
não sei se chegarei, mas fica como perspectiva. E nesse ínterim eu vou fazendo
isso. Depois eu quero ver se recupero alguma do repertório. São coisas que vão
ficando no horizonte.
Você
se cobra muito?
Sim, sempre
(risos). Mas não tem como não né, Luca?
Mas
você acha que pode atrapalhar um pouco?
Não, eu acho que não tem
outro jeito de não ser altamente, de ter uma expectativa de você levar o melhor
que você pode dar ao público. Não dá pra fazer pela metade ou por três quartos
ou um tanto ou se proteger de entregar. A entrega tem que ser cem por cento,
que grau estiver você dos seu cem por cento. Ela tem que ser os cem por cento
que você tenha.
E
você mantém uma
rotina de treinos?
É... eu tenho os meus
treinos, mas eles são altamente pessoais. São coisas assim onde eu acho que eu
preciso mexer, desenvolver, onde eu acho que ali me ajuda a expandir mais. Não
é baseado em nenhuma teoria, em nenhum tipo de método. Foram coisas que eu fui
aprendendo comigo mesma dentro dos meus aquecimentos, dentro daquilo que eu
precisava fazer, o que que eu tinha que exercitar antes para poder realizar
determinado movimento e isso tudo como eu já falei vai me trazendo uma espécie
de construção de banco de dados de movimentos. Porque muitas vezes nesses exercícios
surgem um tempo, um ritmo, um andar, uma mexida de corpo diferente, onde
isolamentos do corpo são usados, em que eu vejo que pode ser uma cena, pode ser
aplicado a uma cena e que no momento eu ainda nem tenho essa cena, mas quando
eu entro para fazer determinado trabalho eu vejo “puxa, olha, aquele momento eu
posso usar aqui, e aplicar aqui”. E aí então esse banco de dados vem à tona e
me serve muito.
Eu ia perguntar pra finalizar, mas
acho até que você já tenha respondido - de alguma maneira - o que que você
ainda não fez que gostaria de fazer?
Ah, vai ser esse negócio
de ficar parada e ainda ser teatro (risos)
Eu acho que você é a única no Brasil
que teria condições de fazer isso.
Ai, Luca, espero! Nem que
isso fique sendo um objetivo, entende? Nem que isso fique sendo um ponto a se
mirar e isso serve. Ele é útil.
Eu pude vislumbrar isso naquela
entrada de ABJETO-SUJEITO
É, eu estou tentando um
pouquinho ali.
Quase um Kazuo Ohno demorando pra
chegar no meio do palco.
É, umas enunciações estão
surgindo, mas ainda sem essa completude toda que espero ter.
Ah, mas eu acho que consegue sim.
Você tem uma energia teatral fora de cena e dentro de cena.
Legal, brigada! Valeu pra
você?
Adorei!
Que bom, meu querido.
Obrigado pelo seu tempo.
Imagina, eu adoro estar
com você.